sexta-feira, julho 08, 2005

A NOSSA FALA XIV - COMÉDADO

O mundo dá as voltas do catano que nós sabemos. Tudo porque o mundo é redondo, não é um paralelepípedo. Antigamente, o mundo aparecia-nos a preto e branco, agora, chega-nos a cores. E, também o sabemos, o dia a dia, a noite a noite, a preto e branco, era substancialmente diferente do dia a dia, da noite a noite, a cores. Sobretudo à noite, era preciso dar a volta às cores da lua. Roubar galinhas, coelhos ou marouva - sempre para comer nunca para estragar - era uma boa opção para alguns contemporâneos dos Beatles que esperavam na aldeia, o tempo de ir para a tropa.
No solstício do Verão daquele ano, logo a seguir às bonecas de S. João que se queimaram na Lagariça, no Outeiro e no Cavacal, apresentava-se ela, a Lua, prenha da luz que o sol lhe emprestava desde o outro lado do mundo. Pitincouro, Lambranca, Fainica, Montanhaque e Pantelhão tinham construído um mapa das capoeiras e coelheiras existentes na aldeia, marcadas a caneta azul as que ofereciam boas condições de recolha de mantimento para a rambóia dos sábados que armavam no palheiro do Fainica, a caneta vermelha os alvos inexpugnáveis ou perigosos. Naquela data, já tinham visitado a maior parte dos azuis. Havia-os que era como limpar o cu a meninos, outros não. Havia vezes que a missão corria bem, outras nem por isso.
Numa das capoeiras de limpar o dito aos ditos, a coisa ia-se complicando por via da cóia que o Lambranca já levava e que, na verdade, já vinha das bonecas do dia anterior, porque ele correra-as a todas três. Tinha passado o fim da estival tarde no fito, intervalando para branquinho fresco em cada uma das 10 vezes que se tinha feito 31. Para não ter de ouvir a velhota, deixara-se ficar no povo, embandulhando mais meia dúzia de branquinhos frescos até que o sino da torre bateu as 10, hora aprazada com os comparsas comensais para demandar em busca de galinácio animal. Como era o mais delgado, cabia-lhe quase sempre aproveitar o buraco e agarrar a pita, sem incomodar muito o galo, enquanto os outros, estrategicamente colocados, montavam guarda no exterior. O sinal de perigo combinado era o pio do mocho que eles foram apurando ao longo do tempo.
- Putas das pitas, cheiram mal como um corno – sussurrou ele ao Pantelhão que estava mais próximo.
- Anda cala-te e avia-te. O esterco dos coelhos é bem pior.
Agachado, o Lambranca ia avançando aos encontrões aos fundos dos baldes de lata velhos onde elas depenicavam o milho e as couves migadas miudinho e misturadas com farelo, resmungando cada vez que sentia a bota deslizar na caca espalhada pelo chão de terra, mas o que o irritou mesmo foi ter posto a mão mesmo em cima de uma viscosidade mal-cheirosa quando, vacilante, mandou as duas mãos ajudar os pés, para se não estatelar.
- Foda-se! Já caguei a mão nesta merda da merda de pita.
Nessa altura, dando-se conta do intruso, a comunidade galinácea começou a manifestar-se algo agitada, a começar pelo galo de crista de açafate. Ao erguer-se com ideia de limpar a mão a alguma coisa bateu com a nuca num prego espetado na trave. O Pantelhão ouviu-lhe alguns impropérios e insistiu, baixinho:
- Faz pouco barulho, caralho! E avia-te, porra!
A coisa descambou mesmo foi quando o Lambranca, na ânsia de limpar a mão suja, a raspou com força na trave de pinho e espetou, fundo, uma escádia no dedo mindinho. Instintivamente, levou o mindinho à boca para aliviar a dor. O sabor amargo da caca de galinha fê-lo cuspir vigorosamente para cima dos bichos.
- Puta que pariu esta merda, eu vou é partir esta merda toda ó caralho!, berrou ele, descontrolado.
A capoeira reagiu, obviamente, com múltiplos cacarejares, cabeças já levantadas. Quase às cegas, o Lambranca alçou a mão ao calhas para agarrar uma das cabeças afuniladas na ideia de a calar de imediato com uma torcedela de pescoço. Estranhamente, quanto mais torcia, mais o animal cacarejava. Instalou-se o alvoroço no galinheiro. O Pantelhão desesperava do lado de fora do buraco:
- Ó Lambranca dum cabrão, qu’arraio de bulha andas tu aí a fazer c'as galinhas?
Já os outros se tinham juntado quando o Lambranca aparece com uma pita a estrebuchar desalmadamente, agarrada por uma asa. O Fainica foi o primeiro a perceber e a dar-lhe a volta fatal ao pescoço:
- Mata a puta da pita COMÉDADO, caralho!
A fuga foi mesmo à justa porque já se percebia o balancear de um candeeiro a petróleo que vinha dos lados da casa do Ti Ambrósio Fanhoso.
Noutro sábado, tinham marcado o palheiro do Ti Zé Manel Caturrão. Lá chegados, deram com fechadura e reboco novinhos, não havia hipótese de buraco para o Lambranca. Vira-se o Pitincouro: destelhamos o telhado. É muito alto, porra, lembrou o Fainica, só se a agarrarmos com uma corda. E onde é que está a dúvida? Vós, esperar ali no barroco que eu já venho.
Só foi preciso desviar 4 telhas. O Montanhaque alumiava com uma lanterna de pilha quadrada e dava as coordenadas ao Pitincouro que segurava a corda de nylon enquanto o Pantelhão ia atirando pedrinhas para fazer as galinhas levantar a cabeça.
- Alumia COMÉDADO, porra!
À enésima tentativa, a pita pedrês lá enfiou a cabeça no nó corredio.
30 anos mais tarde, no solstício do Verão, o filho do Lambranca havia de passar boa parte da estival noite a trocar SMS com a filha do Fainica. Não havia bonecas de S. João.

9 comentários:

Anónimo disse...

Não resisri! só li dez frases e não resisri ao Post. É pá não sei se vou ler hoje o que faslta. Mesgo que leia, vou estár como este á tontinho, demasiado relaxado pra dizer obrigao. Depois vou saboriar!

Anónimo disse...

O meu amigo Lapaxeiro é alguem que segue os seus principios, sem os peri e pis do costume! é alguem especial, só tenho pena que esteja, condicionado, ao momento, o que aliás deve ser terrivel; esperar o momento certo pra debitar o que já pensou, de forma linda, esperar para dar á tecla de forma espectacularmente rápida, porque será entre horas sempre iguais, as em que pode ou as em que a inspiração fica mais livre, se for a segunda opção, eu tambem quero!

Anónimo disse...

Mudando de assunto amigo Lapaxeiro, as ideias transparentes e organizadas, resultam em tudo menos em excesso verbal, resultam sempre e não sei se já sentisre! mas ideias transparentes e organizadas, repito, resultam sempre independentemente do portador, em silêncio com uma vontade enorme de ouvir e gravar, pois, esse é o momento certo para ouvir e gravar no disco. Digo eu.
Aquilo que eu e tu lemos, uns dos outros, pensava eu? Seria exatamente o momento em que a "limpeza e a nossa pessoal organização nos questionava? não o momento oportuno segundo tu, para escrever, aquele em pode-mos, aquele do qual nos faze-mos ser aquele, que detesta-mos, em algumas coisas, mas como "acha-mos" que não temos outro. E temos basta querer, não se pode ficar condicionado, com o teu talento, basta querer!

Anónimo disse...

mata a puta da pita comédado. lol

Anónimo disse...

grande episódio, comédado contado - ou percebi mal?

Anónimo disse...

roubar é feio, não se faz, mas se não o fizessem eu não estava aqui tão divertido a a ler estas histórias !

Anónimo disse...

Gostei da teoria dos silêncios diferentes do Lapaxeiro, gostei da teoria, parece-me bem. Só que suponho deve haver olhar porque se o silencio, for cego at+e podes ver mas a conversa é mesmo a dizer já não consigo, ser metade de ti, não me faças sofrer mais, não quero continuar a ser, metade de ninguem, deixa-me ver ver o meu caminho, acho que tenho, sozinho. Mas depois sabes que vais fazer sofrer alguem muito mais, cuja capacidade de aguentar a dor não sabes, mas desconfias o sofrimento. Que não queres pra ti. Como é que se faz se não queres que ela sofra um sofrimento que tu não desejas! Como é que se sofre sozinho, sem saber se vais mesmo sofrer, ou apenas adiar, aquilo que já por favor, te foi destinado, numa segunda ou terceira tentativa, só porque saboreando aquilo que te envolve, a vida. Consideras que nunca foste demasiado desonesto, mas sempre muito convencido! A vida não é facil, mas quem lê este Blog, pode reparar no "Til" "L" mas esquecer o seu caminho, primeiro, este de ser triste com justificação, que é um mal menor porque sabemos que ainda não chegamos ao "complexo" de peter. Mas não somos felizes "apezar" de sabermos que tudo depende de nós e que o mundo gira.

Anónimo disse...

Pois, cedo ou tarde depende da hora. a que uns ... e os outros...Blá, blá, blá. Mas o Lapaxeiro, pra mim, devia ser um Kota que eu conheço, e que admiro há muitos anos, com virgula o problema é meu. Já bebemos uns Irlandeses, ou então o Chefe que é profissional.

Anónimo disse...

Foram todos de férias e não há ninguem na aldeia dos Xendros, já nem Javalis se vê! ando aqui feito parvo, sozinho, porque quero, a varrer as ruas, só com uma vassoura e uma pá, não digam a ninguêm, que eu esqueço o chapeu, mas foi apenas meia duzia de pregos, que não varri, hamanha, que é o nome em russo daquele ciclista de que eu não gosto. Amanhã ou seja hoje, vai ter uma surpresa quando cá passar! Tantas saudades tuas Xendro. Ás tantas`, nem já entendes as piadas que eu não conheço.