sexta-feira, novembro 18, 2005

A NOSSA COMEDURA -I - A MELOREJA

Iniciamos aqui um entremeado na nossa faladura. O homem nem vive só de pão nem só de palavras. Se o pão for bem acompanhado sabe melhor. Embora o povo na sua filosofia bruta diga quando algo lhe ocorre contra os seus desejos que "mais vale pão seco do que tal conduto", bom, bom,é que o pão e o conduto sejam aprazíveis ao paladar e que a sua degustação não sofra quaisquer contratempos. «Que vos faça bom proveito à barriga e ao peito são as contas que eu lhe deito.»
Nesta altura do ano começam as matanças e nada melhor para ensaiar a nossa comedura do que uma boa meloreja. Assim comédado!
A matança tem regras:
1- Determina-se o dia da matança
2- Convidam-se os amigos/familiares e verifica-se se não há empanques por parte de ninguém.
3-Na noite do dia anterior a vítima fica sem comer, por mor de não ter a tripa cheia ao outro dia.
4-Trata-se de preparar todo o apoio logístico: tripa, laranja, algodão, cominhos, tesouras e facas, loiça adequada, lenha com fartura, alho sal, pimentão do bom, azeite do melhor, tábuas de migar a carne, tabuleiro para as tripas ou até alguma carne, aventais...
5- Cedinho, por essas sete ou antes chegam-se os homens junto ao local da matança
6-O lume já está aceso e um pucheiro com aguardente desmanchada com água e açúcar amarelo já começa a circular para matar o bicho, metem-se as botas na ala, esfregam-se as mãos e
7- Prepara-se uma corda para atar o animal por uma pata
8 - O dono salta para a furda e "nalguda! oh nalguda!!" coça-lhe o samarro e tenta por bons modos enfiar a laçada da corda numa das patas traseiras do bicho
9 - A bem ou a mal o porco/a lá deixa os aposentos e é conduzido até junto da banca
10- Tomba-se o animal, o matador aperta-lhe o focinho com um baraço, sobe-se para banca,lava-se a barbela com água quente, limpa- se com um pano, ata- -se bem à banca quando não até a uma árvore que esteja perto,os homens põem-se a postos um agarrados aos presuntos outro às mãos, o matador faz o sinal da cruz, abre a matadeira e pica o desgraçado, aparece o alguidar com sal e uma mão sempre a mexer o sangue que cai, vão tirando algumas farropas de coalho de sangue,o porco grunhe até dar as últimas.
11- Desapertam-se cordas e baraços, vai mais uma rodada de aguardente desmanchada e doce e
12 - antigamente com colomo de palha, agora com maçarico ,chamusca-se a preceito evitando queimar as mãos de quem raspa. São vários os utensílios usados, desde facas velhas até chapas de lata,ou mesmo as unhas das mãos.Tiram-se as unhas ao quadrúpede e inicia-se a lavagem com água quente.
13 - Quando já branquinho de todo faz-se o cu, e o picho se for macho, ata-se com um baraço,abrem-se os nervos, mete-se o chambaril e ala
14-Pendura-se o animal,limpa-se bem limpinho
15 - Embrulha-se rapidamente uma talhada de queijo fresco e quatro azeitonas retalhadas, uma dentada de pão e limpa-se o esófago com um tinto do novo apanhado do espicho de esteva e
16 - Inicia-se a abertura do ventre, aparam-se as tripas para o tabuleiro e enquanto o matador vai separando as peças e um vai à procura de duas sovinas pra deixar as banhas suspensas, dois ou três homens deitam-se à separação das tripas, ajuizando da sua qualidade.Há sempre algodões prontos para alguma fatalidade
17 - Sobe-se o caldeiro suspenso das cadeias, põem-se as trempes do lume, a meloreja é rapidamente migada e começa a cozer dentro da caçola ou de uma sertã de duas asas; batatas com casca são postas a cozer em panela de ferro.

18 - Aí vai a receita:

deita-se para a sertã aí obra de 2dl de azeite e logo a carne, esmagam-se alhos,tiram-se-lhes os grelos e atiram-se para a sertã, vai- se mexendo com colher de pau até a carne ficar meia frita, duas folhas de loureiro bem lavadinhas,picante a gosto,pimentada caseira se houver, rega-se com água, sempre a pouco e pouco,já que carne deve ficar entre o frito e o cozido, prova-se, rectificam-se temperos, e quando estiver quase pronta, um bom meio litro de vinho tinto para a confecção mexendo sempre, tiram-se as batatas do lume, descascam-se ou pelam-se, chama-se o povo para a mesa, despeja-se a sertã para um barranhão, parte-se pão com fartura põem-se as batatas em travessa e, cada um com seu garfo,pica na carne e molha a batata no molho e toca a comer. Não raro aparece um esparregado de nabo para dar o verde ao prato.O vinho é sempre a encher até o barranhão ficar limpo.
A seguir pode-se alindar esta classe de cozinhado com um prato de sopa de couve traçada e massa da grossa em puré de feijão encarnado, um arrozinho de osso da suã, fígado e soventre, sempre com azeitona retalhada e culmina com um galo ou um coelho bem guizado. Para sobremesa um arroz doce, pudim de ovos, tigeladas, e no fim um café e um bagaço do rijo para arrebater.
Às 11 os homens estão despachados e bem comidos e "ala para o sol".

9 comentários:

Anónimo disse...

Ás 11 os homens estão despachados! Pouco trabalho lhes dá a matança. As mulheres, porém, têm trabalho para 2 ou 3 dias, fora o que tiveram com a preparação do evento. Lavar as tripas, cosê-las, fazer os enchidos, preparar os presuntos para a salgadeira, acender o lume ao fumeiro todos os dias...
Quanto à "molareja", costumo comê-la com umas lascas de pão cortadas no fundo do barranhão, ensopados no molho, são de lamber os dedos.

Anónimo disse...

um tipo ler isto antes de almoço, cheio de fome, é duro, tão duro como agora saber o que irá almoçar...

Anónimo disse...

Isto faz-me lembrar quando a minha madrinha "matavo o porco"...Agora já não o faz, modernices...A tradição já não é o que era.
Mas, a verdade é que para além da "festa" associada ao evento (que eu adorava) o que me ficou mais preso na memória foram dois pormenores:
1) A furda do animal é mesmo atrás da minha casa e não havia pior despertar do que o animal a berrar que nem um desalmado...
2) Embora o odor não fosse aprazível o que eu mais gostava de ver era as mulheres que limpavam as tripas...A giesta era manuseada com uma destreza impar. Nunca cagavam as mãos. Era preciso ter arte...

Anónimo disse...

Começa a chegar a altura do ano em que morrem mais marranos por sábado. Há que preparar os enchidos: morcelas (no dia da matança, por mor de aproveitar o sangue), farinheiras (no dia seguinte, logo que o porco é desmanchado e são cozidas as gorduras), chouriços e chouriças (três dias após a matança e depois de as carnes terem estado a curtir em tempero apropriado - já experimentaram assar um desses pedaços na brasa?.
Na época alta das matanças, o despertar aos fins-de-semana em Aldeia do Bispo é acompanhado de um coro de grunhidos vindos dos quatro cantos do povoado, emitidos pelos porcos nos estertores da morte. Coitados! Mas morrem por uma boa causa (haverá, afinal, uma boa causa para a morte?)

Anónimo disse...

Uma boa causa para a morte, é ter o azar de estar vivo e a sorte de não estar morto. É importante ter mais sorte do que azar. Gostaria de provar um dos petiscos da Angarela, por altura da matança.

Anónimo disse...

Informo todos os potenciais interessados que sou melhor a comer petiscos do que a fazê-los.

Anónimo disse...

eu sou como a Angarela... Venham os petiscos que eu também alinho! Até posso lavar a loiça no fim, se for preciso. Então, não há convites?

Anónimo disse...

O Clube de Amigos do blog Baságueda (que é como quem diz, os autores conjuntamente com os comentadores mais assíduos), bem podia promover uma rambóia. Uns poriam o pão, outros a chouriça e outros o vinho. E nesta altura, se aparecessem umas filhós, também marchavam. É só uma ideia.

Anónimo disse...

Isso de assiduos, é que é complicado, é necessário, muiota matemática. Que é uma coisa que tu deves estudar, quanto mai melhor.