sexta-feira, dezembro 30, 2005

A NOSSA COMEDURA - III - BACALHAU À ALMA DUM RAIO

Tempos dum raio aqueles: uma pessoa levantava-se - NO VERÃO - noite escura, breu como alcatrão, acendia-se o lume para a cozedura do malhinho (feijão frade) , aguado quanto bastasse que o caminho era ainda longo e não se compadecia com os gases intestinais. O caminho era para andar em rancho," c'ossenão!": se queres ver o teu companheiro a andar, põe-te a cagar!
Assim fui eu, garoto ainda, mais a minha mãe - mulher ímpar, há pouco desaparecida do mundo dos conviventes, mas que perdura sempre na propagação dos que amadamente gerou e criou - caminho da serra da Raposa fazer um quinto. Aquilo era a doer! Não tanto para para mim que não entrava nas contas, e que, quando me apetecia largava o sacho da sacha (= monda) do milho, quando se aterrava por mor de , se chovesse, a água não lhe levar a terra e deixar a raíz ao sol exposta e logo secar.
Se o calor me apertava muito, vinha para a sombra dum abrinheiro de rainha Cláudia - não era grande sombra, mas sempre era melhor que a torreira do sol - , dava volta ao resto da merenda e rapava o que aparecesse.
Quando, já noite adiantada, chegávamos a casa, eu e a minha mãe, ela mais estafada do que eu, o que apetecia era um refresco de vinagre, água do cântaro e açúcar.
Tantas vezes fiz esta maravilha de gelado!
Ainda hoje gosto deste refresco. Tem é que ser com vinagre do verdadeiro! Tinto. Assim mesmo comédado.
Ora.... (e lá vem a estória... e, claro, a receita!)
Ainda muitos dos que nos lêem se hão-de lembrar que se criavam porcos para a matança no centro do povo. No ano em que o Karraio (= ingrumêncio .) nasceu - 1961, Outubro, o nosso bacorinho crescia ali no beco do Chico, numa furda, paredes meias com o velho Valente.
Minha mãe, já ia adiantada na gravidez e as ordens foram estas: " ficas cá, pedes a burra emprestada à avó, tiras o esterco ao porco e vais a descarregá-lo ao chão na leira do poço pequeno que é por causa de lá semearmos as batatas."
Pronto! fiquei e tirei o esterco.
Não penseis vós que era tarefa doce! Para um garoto espetar a forquilha no feto, cardido e cardado pelo patear do roncador, e acertar nas angarelas, era aventura hercúlea!
Não me levantei para as migas do feijão pequeno, mas foi pouco depois. Três vezes fui com a burra a descarregar o esterco!
Eram para aí obra das cinco da tarde quando desaguei a burra, a meti no palheiro e me fui lavar debaixo do caldeiro com um funil invertido, furado à laia de chuveiro, coisa que era um luxo para a época! Lavava o cabelo com petróleo para evitar o piolho e ficar reluzente. Até alumiava!
Disse cá para mim:" vou-me a fazer um refresco de vinagre e espeto-lhe uma sorna das valentes!". esta era a ideia...
Quando chego ao pé do fogão vejo umas aparas( Pelharancas) de bacalhau na água a dessalgar!
Tiro de cabeça!:
1 - cozem-se uns quantos olhos de couve da branca, sem sal
2 - enquanto a couve ferve, estalam-se uns valentes dentes de alho numa sertã funda
3 - Quando tiverem estalado tiro-os e boto para o mesmo azeite uma cebola às rodelas e deixo alourar bem
4 - tiro a pele e as espinhas ao bacalhau, lasco-o grosso e deito para a cebola já dourada. Abafo!
5 - abaixo lume e deixo cozer lentamente
6 - escorro as couves, espalho maneirinhas, a fim de perder mais depressa a água e arrefecer um chisco
7 - confirmo se o bacalhau já se tomou do azeite assim comédado. Envolvo bem.
8 - deito o alho que fora retirado, avivo o lume, deito os olhinhos da couve e mexo com a colher de pau.
9 - Tapo bem aí obra duns cinco minutos. Torno a envolver e abafo.
10 - salpico com vinagre do verdadeiro, deixo suar!
11 - papo tudo e arroto!

PS. - para quem quiser, pode, na altura em que deita o bacalhau para a cebola a aloirar, juntar umas batatinhas cortadas largas, às rodelas. Só depois de quase semi fritas /cozidas, deve acrescentar os olhos da couve.

Só vos digo: é a oitava maravilha do mundo!

Minha mãe é que não gostou muito desta minha desenvoltura, e : Ah!ALMA DUM RAIO!

9 comentários:

Anónimo disse...

Podia ser, tens jeito, pro petisco e bla bla, com mezinhas, transformadas em assunto, não é o meu jeito, até gosto de cozinhar, mas desde puto, maldito vicio, nunca abusei do sal, logo não me meto, naquilo que não sei. O que eu sei é que estou aqui e tu e ele há coisas, que não carecem de receita, pra que se nos sinta esse sal, saloio, sem mar que arde como o caracas e ás vezes, parece, que vai salgar o Banquete, mas a gente aguenta. Até não sabe assim tão mál. È uma questão de apurar o sabor. Depois inventar outras formas, já depois das mil de fazer o Bacalhau.

Anónimo disse...

acabei agora mesmo de ter conhecimento deste vosso belissimo blog, coisa nova pra mim. parabens. vou passar a estar atento. BOM ANO A ESTE BLOG E AOS SEUS CRIADORES. (manecas)

Anónimo disse...

Não vos preocupeis. Não sou a da morte, sou a da sopa.
Já tive o gosto de saborear alguns dos petiscos do Changoto, embora nunca tenha comido bacalhau à moda dum raio. Garanto-vos que os seus cozinhados são verdadeiros pitéus. Tem cá um dedo pra cozinha!
Muitas vezes tenho ouvido dizer que a nossa zona é pobre em pratos típicos. Pois tenho a certeza que se perguntarem ao Changoto ele logo ali enumera um extenso rol deles. Experimemtem!
Por isso, espero que, a par das sempre divertidas histórias associadas a termos e expressões da Aldeia, se prossiga na senda das receitas culinárias. Eu, por mim, garanto que algumas hei-de experimentar.

Anónimo disse...

Feliz 2006! E se não for pedir muito, que seja substancialmente melhor que o de 2005.

Anónimo disse...

O amigo Gadanha, tira a sopa de onde quizer, estava, fria a gente aqueceu. Filomena Mónica era o meu cozinhado de hoje, fiquei passado, ainda mais do que quando se lê. Bem adorei. Mas nem só da gula vive o povo, logo peço ao Changoto, que faça "intermiada". Pois quem tira pra dividir, tanto tira os frescos legumes, como a gota do azeite, logo só receitas não, quero saber mais, sobre o mundo, mantêm o esquema por favor.^ Vamos deixar a Filomena pra outro dia e ser Da Freguesia Aldeia do Bispo, Xendros e comer a nossa Meloreja comédado.

Anónimo disse...

Claro que sim, pra minha melhor amiga, Amiga angarela, claro que sim.

Anónimo disse...

Gostava de sugerir aos mais recentes visitantes deste espaço que, tal como eu, façam um périplo pelos textos dos meses anteriores, talvez mesmo desde o início. Aposto que vão gostar.

Anónimo disse...

Almadodiabo, podes voltar!

Anónimo disse...

ÉS IGUAL a ti, nada a dizer, gosto do teu humor, feito na Aldeia. Digo eu. Tens esse dom, quaze sempre tens piada. E depois estás ai preso, e és o único recluso a quem eu, para além do mano, admito essa reclusão. Me amigo.(estou na fase dura do meu ser).