quarta-feira, outubro 31, 2007

A NOSSA FALA - XCVIII - MÔTCHO



Nesta altura, a agenda da nossa cultura marca que devemos lembrar-nos dos mortos – o Sr Prior será mais polido e preferirá sempre dizer: “os que já partiram” ou “ aqueles que já foram chamados”. Seja como for, estamos a falar desse inelutável e irreversível fenómeno que é a morte. Parece que foi Bento, o Santo, não o XVI, que se lembrou de “catolicizar” uma prática ancestral pagã crente na imortalidade da alma.

Aqui se presta homenagem “in memoriam”. À nossa maneira, mas sempre “in memoriam”.

Por toda a aldeia, da Portela à Lameira da Pinta, do Carregal à Saramaga, se ouviu o sino entoar 4 vezes a mesma batida sincopada: tinha morrido um homem da aldeia. Se fossem 3, era sinal que tinha sido uma mulher. Um código simples, uma espécie de requiem, conhecido de todos. A notícia espalhou-se com o vento, como era habitual: tinha morrido o Ti Tonho Zéi mataburros – assim alcunhado por via de episódio em que ele teria dado cabo de um jerico com uma machada na testa, por o animal insistir em cheirar o cú da burranca do velho João Dez Réis, com quem ele não se dava. Depois de lavado, vestido e preparado pelas filhas, o corpo foi velado na Igreja, durante toda a noite, pela comunidade, que acompanhava as rezas com fé e o choro carpideiro da família. Toda a gente anuía que Tonho Zéi tinha sido bom homem, nunca fizera mal a ninguém – o episódio do jerico, naturalmente, não contava. No dia seguinte, reuniu-se a aldeia para a cerimónia religiosa fúnebre e acompanhamento do defunto à sua última morada.

Naquele tempo, ainda se não usavam os caixões de madeira rendilhados com fios de metal dourado para cada falecido. O defunto era enrolado numa manta de felpa e assim depositado na sepultura. No transporte desde a Igreja até ao cemitério era utilizada uma caixa de pinho, adornada apenas com um crucifixo e 4 pegas de ferro pintado a negro, onde outros tantos homens pegavam. Ao lado, ia sempre um garoto com um môtcho que servia para suportar a caixa enquanto os homens descansavam. O acompanhamento religioso incluía, para além, evidentemente, do Senhor Prior, do sacristão que transportava a caldeirinha da água benta e dos andores da Confraria – com as lanternas, bandeira e estandarte -, a campainha que trinava ao longo do percurso. Havia sempre uma catrefada de garotos a disputá-la, sendo o bafejado designado pelo sacristão. O pequeno Alberto Faznada sentia-se injustiçado porque os outros nunca o deixavam tocar a sineta. No funeral do Ti Tonho Zéi lá ia ele no meio de 20 garotos empenhado em ter o direito, ao menos um bocadinho, de abanar os 3 barulhentos badalitos. Nada! Os matulões do costume atiravam-lhe olhares agressivos e negavam-lhe tamanha glória. Já à entrada do cemitério, furioso, havia de lançar aos outros a terrível ameaça:

- No me dêxandeis tocar a sineta? Andar filhos do diabo que q’ando morrer o mê pai hei-de a tocar eu sozinho o tempo todo.

Foi sobretudo a partir da década de 60 que a nossa cultura começou a matar a morte. De algo que era vivido em público, principalmente no meio rural – e Portugal era quase todo meio rural - em que a dor era comungada e sentida pela comunidade, o fenómeno passou a ocultar-se, a privatizar-se, a modernizar-se no sentido urbano. Observe-se um funeral numa cidade, ainda que de média dimensão, nos dias que correm. A cerimónia pode passar perfeitamente despercebida na confusão do trânsito ao pacato transeunte que se passeia na avenida entretido a contemplar as numerosas e coloridas montras comerciais. Ninguém sabe se naquela carrinha funerária de vidros fumados vai homem ou mulher, qual o seu nome, a que família pertencia, de que morreu. O sino não tocou nem 3, nem 4 vezes o requiem, e mesmo que tivesse tocado, ninguém o teria ouvido porque na cidade o sino não é referência, nem para as horas. E mesmo que o tivessem ouvido, não saberiam descodificar qu’arraio era aquilo. A comunidade não velou o corpo, não carpiu a mágoa da perda com a família. Não se via nem padre nem sacristão, nem lanterna, nem bandeira. Atrás do veículo não iam garotos a disputar uma campainha.

Sobretudo no contexto urbano, o quadro das práticas e das representações da morte foi retocado pelo progresso. As transformações são visíveis em todos os domínios: na dessacralização das exéquias; na crescente “desresponsabilização” da família, compensada pela hospitalização da morte; na profissionalização e comercialização dos rituais fúnebres; na substancial redução do período de luto, das suas manifestações e vivências; na adopção de novos métodos de evacuação como a cremação; na crescente privatização da dor, também por ausência de comunidade. A morte está mais discreta, afastada do nosso espaço quotidiano, porque mais banalizada. Seja na nossa comunidade, seja na dos Iraquianos, dos Curdos, dos Chineses ou dos Uzbeques, já nos habituámos a olhar para ela ao longe, recostados no sofá e chinelinho no pé.

O inglês Geoffrey Gorer antecipou na década de 50 que o assunto viria a tornar-se no tabu do sec. XX, destronando o sexo. Viu bem. Afinal, qual é o homem que se pode gabar de ter morrido, aos seus amigos?

Sentai-vos num môtcho e recordai os vossos que já partiram e reflecti sobre as vossas práticas e representações sobre o assunto. É tempo disso.

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem amigo Karraio.

Eu embora longe, tambem recordo.

Na verdade faz parte deste caminho com bilhete de portagem limitado. Em que embora seguindo viagem, desconhece-mos o valor a pagar e o numero de quilometros a precorrer.
Sei que os meus entes queridos, nao se importam que eu os recorde durante muitos anos e eu tambem nao!

Um abraco.

Anónimo disse...

Sentei-me no motcho e pensei, hoje vou falar das pessoas que nunca serao vulgares, vou falar daqueles e daquelas a quem tiro o chapéu e faço uma vénia, das pessoas que foram para mim fonte de força e inspiraçao.
Por analogia a um jogo de estratégia, todos nós jogamos na vida aquilo que queremos, e somos quem quisermos pois tudo depende da nossa capacidade de dedicaçao e abstracçao em relaçao ao que nao gostamos de ser, e, da nossa capacidade de captaçao e absorçao em relaçao ao que gostamos de ser. Existem pessoas boas que passam e pessoas boas que ficam, mas todas essas pessoas vivem cá dentro, e sao um pouco de nós. Quantas vezes nao ultilizamos locuçoes que ouvimos alguém dizer, vestimos roupas como as que vimos alguém usar, fazemos e agimos com alguém nos ensinou, com os seus conselhos, os seus "puxoes de orelhas", a sua forma de ser e de estar. Olhamo-nos ao espelho e nao vemos apenas a nossa pessoa, vemos todas aquelas que passaram e nos ensinaram a ser como somos. Umas já partiram e nunca mais as vemos, outras já partiram de outras formas e a suas presenças parecem constantes nas nossas vidas . Por isso , vale a pena aprender com essas escassas pessoas mais que construir projectos de vida sem cor, viver em lugares inóspitos e sem sabor, dar a quem nao quer receber , descubram nas amizades , nas verdadeiras amizades , o doce sabor e o glamour com que se fazem pecados veniais .Como dizia o poeta: "Se eu tivesse que viver minha vida novamente, eu cometeria os mesmos erros, só que mais cedo."

Anónimo disse...

Esqueci-me de dizer para não acrescentarem dias a vossa vida, mas vida aos vossos dias e que as coisas mais importantes da vida não sao coisas , alguem disse isto há muito tempo ...continua a ter razão

Anónimo disse...

sim...