sábado, novembro 08, 2008

A NOSSA FALA - CXVI - GADAPUNHO/a

Leroi-Gourhan em Le Geste et la Parole, com mestria, defende que o trajecto da evolução humana se inicia no pé, passa à mão e termina no cérebro: é a famosa dialéctica do pé - mão - cérebro. O bipedismo humano encarregando os pés do suporte do corpo e deixando as mãos livres para as outras funções mecânicas, desde coçar-se, fabricar instrumentos (do erectus chegou ao faber e ao habilis), até abraçar, fazer gestos para intercomunicar - sim que a um caçador não convinha meter barulho que assustasse a presa - por isso, inventou a sinalética, o gesto, o mimo, sinalizando o que pretendia ao outro seu igual e companheiro na angariação de alimento, até, por fim, chegar ao sapiens e ao sapiens sapiens com as consequências advenientes: oponência do polegar, redução do prognatismo, aumento do perímetro cefálico (...)
Não resisto a adulterar a tese de Gourhan: hoje temos ainda o demens...
Vem tudo isto a propósito de que na sociedade nética em que convivemos e competimos, a ordem natural destes factores se inverteu ou pelo menos se subverteu, profanou, sei lá!
Aqueles que, como eu, ainda jogaram descalços à bola, para todos estarem em igualdade de circunstâncias e que corriam a ribeira e os campos em busca de aventura, tinham que tirar da cabeça muitos engenhos que construíam e que depois lhes serviam para uma finalidade, mesmo que essa fosse o jogo (afinal também há o homo ludicus).
Lembro-me bem de irmos, eu e muitos, para a Eira Cimeira onde abundavam mimosas e construir arcos e flechas com que jogávamos aos índios e cow-boys, outros faziam pistolas de cana rasgando orifícios com navalhas afiadas e construindo uma mola que faria disparar o projéctil, ainda relas e caravelas (agora chamam-lhes vira vento) de embude seco, colando as paletas de papel com carapetos de silva (e se aquilo girava!), bilhardas, pinocos, carrinhos de empurrar, trotinetes de esfera, fisgas ( fungas, como lhe chamávamos) , piões, que sei eu, tudo era por nós construído, as mãos tinham importância e "dialogavam" com o cérebro proporcionando um benefício mútuo.
Quando algum aparecia com algum brinquedo, ou mais perfeito ou inédito : «mostra lá!» e o autor: "olhó aqui! tu vês com os olhos; sapa daqui as gadapunhas ou tens a vista na ponta dos dedos? O diálogo continuava e a arte de falar, com alguma oratória e bajulice a acompanhar, mais cedo ou mais tarde, lá permitia que a novidade fosse mirada e remirada e, às vezes, imitada.
Já não é assim agora: a rapaziada já não joga a bola na estrada, já quase não vai a pé para a escola, mexer numa faca nem pensar, fazer um brinquedo não é preciso porque os poluímos com tantos que lhes damos e dão, a ponto de nem lhes ligar nem os respeitar e cuidar.
As mãos já não fabricam. Estão condicionadas a um conjunto de tarefas pré- determinadas e fiscalizadas por guardiões do templo que apoiam, estimulam, convencem. Fazem todos o mesmo, não há originalidade nem criatividade. Só mecanicismo. Começam à hora, acabam à hora. Já não têm o "nosso" tempo, mas apenas o tempo que lhes concedem.
Sendo assim, o pé corre pouco porque fica quieto na sala, a mão tem pouca maleabilidade e elasticidade porque condicionada apenas aos exercícios pro(im)postos, e, em consequência, o cérebro prepara-se para funções repetitivas sem desafios que o obriguem a sinapses mais complexas e a respostas, que, certas ou erradas, não interessa, eram resultado de um exercício individual e solitário do pensamento individual e não uma resposta condicionada a ordens e a horas que os outros estabelecem.
O largo do Batoco, hoje baldio, em tempos foi alvo de disputas pela posse e há ainda quem, velada ou confessadamente, afirme que lho roubaram e que, se quisesse, ainda podia fazer valer o direito de propriedade sobre o espaço.
Aí, ao canto esquerdo, havia uma poça (espécie de charco), onde muito gado bebia e, espalhado pelo largo, havia tufos de bravos e até mesmo, junto à parede que o limitava e que tapava o ribeiro do Batoco, hoje coberto, paralelo ao quintal dos Póvoas, havia mesmo embacelamento das vides. O resto do espaço era absolutamente desorganizado e a malta jogava ali à bilharda, ao ferro, ao pinoco, a esconder e a achar, ao burro,... e, às vezes, traçava-se um itinerário para uma gincana com cronometrista e tudo, que o Velho Jonja já tinha um relógio de pulso marca Cauny e emprestava quando era ele a dar a volta.
A gincana tinha várias fases, desde o pé cochinho, à corrida livre, a saltar aos pés juntos e, claro, a dar a volta inteira com o mais que famoso carro quadrado das bilhas do gás, onde ninguém, mas mesmo ninguém , algum dia meteu os gadapunhos com a habilidade e mestria deste que isto tudo vos conta. Dava-lhes um bailinho que eles : "Filho dum raio que o parta, num há ninguém que lhe consiga ganhar com o cabrão do carroço! É chapado para manobrar aquilo".
Perdoe-se-me a vanglória, mas quem não tem um Ego de estimação, também nunca viveu uma aventura assim mesmo daquelas comédado.
Confesso que isto hoje foi um bocadinho para o pesado, mas o cérebro é agora quem comanda e a mão (não já o gadapunho) limita-se a obedecer e a carregar na tecla que permite construir a palavra que dá sentido a isto tudo.
Descansai o vosso cérebro: para a semana já volto, com ou sem carrinho do gás.
XXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII.

4 comentários:

Anónimo disse...

Já te disse mais que uma vez: "reune estes textos e edita-os, não se podem perder!". Quando é que o fazes? Num só texto consegues juntar conhecimento cientifíco, linguístico, literário, cultural... muitas vezes, claro, filisófico!!!
Nunca pares de escrever, mas vê se não perdes os teus textos!!!

a aldraba disse...

Acabou de receber o prémio Dardos.

Agora é só cumprir as regras. Quem recebe o “Prémio Dardos” e o aceita deve:

1. - Exibir a distinta imagem;

2. - Linkar o blog pelo qual recebeu o prémio;

3. - Escolher quinze (15) outros blogs a que entregar o Prémio Dardos.

António Serrano disse...

Melhor que jeropiga nova com castanhas quentinhas só este texto e todo o seu conjunto. "Tenho a certeza" de que, reuni-los num livro, será o seu destino "fatal". Eu compro. Fico à espera!!!

João L Oliveira disse...

um exemplar autografado para mim !

fico à espera ..