quinta-feira, junho 06, 2013

A NOSSA FALADURA - CXCVII - GANAPO

Os latinos práticos como eram, detinham-se pouco com palavras e, tanto assim, que uma das suas máximas era a famosa "Res non verba", que à moda portuguesa pode ser ser traduzido como a oposta do "bem prega frei Tomás, faz o que ele diz e não o que ele faz".
Se repararmos, todavia, as palavras também pode ser consideradas como acções e reacções. Se eu disser, por exemplo, Gosto muito de ti a alguém, fica claro que fiz uma frase gramatical a que posso chamar locução, e ao fazê-lo, já fiz uma acção - a da fala - e espero de quem me ouve um tipo de reacção favorável ao sentimento que eu lhe expressei, nem que seja um simples sorriso, mas, seja como seja, a minha declaração activou  o sentir do outro e se houver testemunhas, como por exemplo no simples SIM de um casamento, também esses ficam reactivos.
A publicidade parte muito deste credo.
Não sendo eu, nem de longe nem de perto, minimamente especializado em marketing, sei, podemos dizer, por intuição, que ' farejo ' um bom jargão ou um spot publicitário, antevendo-lhe bons augúrios ou tempo perdido.
Uma das circunstâncias que me deixaram marcas memoriais, tem a ver com o Mundial de Futebol em Espanha, em 1982, na sua 12ª edição.
Muito atempadamente e com uma qualidade digna de monta, ainda por cima, tendo mais a ver com os valores ocidentais do que outras aventuras em desenhos animados ( por exemplo Heidi, Marco, dos Apeninos aos Andes,etc.), os espanhóis lançaram umas quantas figuras lendárias do seu futebol que tinham sido raptadas e que um grupo de corajosos jovens procuravam encontrar. A trama estava muito bem concebida e a popularidade dos ícones correu mundo, aproveitando Espanha para fazer vingar os seus produtos. Assim uma das figuras era Citrónio, em figura do limão, Naranjita como representante da laranja, Tomatito para o tomate e outros. Ressalto desses outros, fazendo lembrar a diáspora espanhola, ao mesmo tempo que fazia apelo à multiculturalidade e combatia preconceitos rácicos e xenófobos, ressalto, dizia, o Chico Escuro, figura de negro, altamente resistente e corredor de fundo.
Sabido como é que nas aldeias as pessoas são mais conhecidas pelos apelidos do que pelos nomes próprios, à medida que os anos passam as alcunhas vão desaparecendo com os seus titulares e vão sendo substituídas por outras novas, mais adequadas ao tempo e às características do novo portador dessa alcunha. Foi assim que o Zé, da família Aspirante, passou a ser o Chico Escuro. Moreno como era, sempre solícito a aviar recados, disponível para grande variedade de serviços, não sabia andar senão a correr e imitava motos ou carros de diferentes marcas, adaptando o veículo imagético ao percurso que tinha que fazer para aviar o recado. Ia e vinha no esfregar de um olho e esta sua rapidez e competência valia-lhe ser contemplado com uma moedita ou até com uma guloseima, coisas que em casa nunca contariam da sua ementa. Os olhos redondos muito vivos de córnea branca sobressaíam naquela carita de tez mais que morena, as pernas eram fibra pura e, para a idade, demonstrava um força invulgar. Curioso, queria saber como se fazia tudo e arriscava experimentando. Duma vez ia cortando o indicador da mão esquerda porque se lhe meteu em cabeça cortar um tanoco de pão centeio em cima dum tronco de figueira que, dizia, "era como os cozinheiros faziam na televisão". Agarrou-se ao dedo, não chorou, mas vendo que o sangue não estancava, viu-se obrigado a mostrar o corte à madrinha Circuncisão. A mulher ia caindo para o lado e mandou um grito lancinante:« rais ta partissem ganapo dum raio...Carraio andaste tu a fazer?...»Eu, que vinha chegando com o inefável carrinho quadrado, apercebi-me da gravidade da situação, corri a casa, trouxe água oxigenada e um trapo lavadinho, apertei bem o dedo do Chico escuro e enrolei-lhe o sanapismo com força de garrote. Qual Lilliputiano a amarrar Gulliver, também eu dei voltas com linha branca de coser e ajustei o trapo. Facto é que o sangue estancou e Chico Escuro sentou-se no batorel ouvindo ralhos de todos os lados mas sem nunca aqueles olhos ladinos verterem uma lágrima que fosse.
O acidente foi motivo de conversa pela tarde dentro.
Já noite dentro, chegaram Nazaré e Júlio, pais de Chico Escuro e a mãe quis logo ver o talho, mas lá a conseguimos sossegar e no outro dia , então, é que verificamos o estado da ferida. Voltamos a desinfectar, regamos com mercúrio =mercurocromo e dois dias depois a carne já tinha sarado.
XXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGRRRRRRRRRRAAAAAAAANNDDDEEEE

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